Corrupção pública e apatia social
Nosso regime tendencialmente autoritário e manifestamente populista ocupa todos os espaços e obriga o Judiciário a humilhar-se ante o Executivo.
Deixem-me contar como as coisas estão mal. Quanto tempo tardaremos para entender que a pobreza, a ignorância, a decadência do sistema de ensino e saúde pública e as desigualdades não são meramente males em si mesmos, senão uma consequência direta do desbarate egoísta e da usurpação pessoal dos recursos públicos? Quanto de dignidade ainda nos custará assumir a dimensão real das cifras de escândalos sobre corrupção que quase diariamente assolam o País ou do perigo que representa para uma democracia quando um regime tendencialmente autoritário e manifestamente populista ocupa todos os espaços e obriga o Judiciário a humilhar-se ante o Executivo? Por que o Estado se exime continuamente de estabelecer um conjunto eficaz de medidas e dispositivos institucionais para tratar de erradicar a corrupção, minimizar seu alcance e castigar todos os indivíduos que obtêm um benefício pessoal com essa prática que é - ademais de grotesca, doentia e perversa - ilegal, ilegítima e inumana? Por que os cidadãos e as instituições que efetivamente dispõem das condições favoráveis para combater a corrupção seguem em sua grande maioria apáticas e indiferentes a este tipo de prática que debilita tanto as bases da igualdade e da vida social comunitária como a eficácia mesma da liberdade? Por que descuidamos tanto da “eterna vigilância cidadã” (republicana), que trata de evitar que o comportamento corrupto por parte dos mais astutos rompa os vínculos da igualdade cidadã e rebaixe as concepções da justiça e da ética a uma banalização do uso do poder ao serviço de espúrios e injustificados interesses egoístas (isto é, da injustificável degradação da res publica à res privata)? Por que buscamos consolo na esquizofrênica tentativa de purificação institucional e social provocada pela crescente idiotização da cobertura mediática sobre os “grandes escândalos” de corrupção levados a cabo por políticos e funcionários pertencentes ao “alto escalão” do governo? Por que as instituições responsáveis por coibir esse tipo de prática, mediante um esforço conjunto e ações coordenadas, não se dedicam também e prioritariamente à “caça menor” e menos sensacionalista, isto é, daqueles funcionários mais correntes que, locupletando-se dos “benefícios” da corrupção e sem nenhum tipo de escrúpulo, multiplicam seus patrimônios “estando dentro do governo”? Por que temos a impressão de que a maioria de nossas “instituições” não são capazes de reconhecer os mais anfêmeros e frequentes casos de corrupção nem que estes bailem desnudos ante elas?
Todas estas perguntas não são algo que podemos simplesmente eliminar ou ignorar por falta de interesse no tema. A moral nos obceca e os meios de comunicação não deixam de bombardear-nos diariamente com histórias e tergiversações a respeito: as duvidosas medidas administrativas e judiciais para punir esse tipo de prática, o valor de provas anedóticas, a banalização dessa prática marcada pela mais absoluta impunidade, as boas intenções, os interesses corporativos e/ou políticos em jogo, as promessas ilusórias, os discursos paliativos, e outras muitas notícias “que vendem” e que servem de pretexto para os protestos de agudeza de jornalistas e colunistas de grandes revistas semanais.
Em alguns aspectos, na medida em que damos créditos a tais histórias reflete o muito ou o pouco que apreciamos dramatizar sobre nossos problemas, ou – dito em termos menos condenatórios – o muito ou o pouco que desfrutamos com os rituais de purificação públicos em nossa vida cotidiana.
Afortunadamente, contudo, não são poucas as informações que recebemos em que os casos de corrupção nos enchem de enleio e indignação. O único que provavelmente falte nesses relatos é a necessidade de insistir e explicar que: 1) a corrupção, ademais de ser a expressão de um comportamento desviado individual, surge desde dentro ou é gerada pelo próprio sistema; 2) que as instituições devem ser suficientemente fortes, as investigações rigorosas e os castigos severos; 3) que a impunidade faz ao delinquente (Frei Betto); 4) e que há uma “lei de ferro” que rege a experiência humana: se realmente procuramos o que está errado, encontraremos muita coisa.
Afortunadamente, contudo, não são poucas as informações que recebemos em que os casos de corrupção nos enchem de enleio e indignação. O único que provavelmente falte nesses relatos é a necessidade de insistir e explicar que: 1) a corrupção, ademais de ser a expressão de um comportamento desviado individual, surge desde dentro ou é gerada pelo próprio sistema; 2) que as instituições devem ser suficientemente fortes, as investigações rigorosas e os castigos severos; 3) que a impunidade faz ao delinquente (Frei Betto); 4) e que há uma “lei de ferro” que rege a experiência humana: se realmente procuramos o que está errado, encontraremos muita coisa.
Seja como for, a corrupção no Brasil é um fato e a impunidade um fenômeno exposto à vista de todos. Além disso, a ingente necessidade de instituições à prova de vilões e corruptos parece ter o mesmo significado que para um cego representa a beleza de um crepúsculo: um conto, uma metáfora, nada mais. Os casos de corrupção se dilatam e a falta de vontade política para investigar, julgar e punir constitui a principal causa da degradação da confiança e da inquietante anarquia moral que infectam nossas instituições públicas. A pavorosa orgia brasileira de corrupção e impunidade “está no ar”.
E já sabemos que a corrupção é um mal que afeta principalmente às pessoas, atenta contra os direitos fundamentais, enfraquece a república, destrói a institucionalidade democrática, impede a igualdade de oportunidades, o exercício das liberdades e acentua as desigualdades (Villanueva Haro). Um ato de poder que, atuando por encima dos princípios e normas de um Estado de Direito, viola sistematicamente as expectativas dos bons cidadãos. Um comportamento que debilita a coesão social ao carcomer paulatinamente um conjunto de valores importantes para a sociedade, gerando altos e intoleráveis níveis de paranóica desconfiança.
Também sabemos que a construção do Estado democrático de Direito tem, entre seus fundamentos, que os funcionários públicos, de todas as categorias, obrem ao serviço do interesse geral, com imparcialidade, objetividade e sob uma taxativa interdição da arbitrariedade. Estes princípios, constitucionalizados, são a base do marco normativo que exige prevenir e castigar toda e qualquer forma de corrupção. Porque, em efeito, a corrupção é precisamente a negação destes princípios e a subversão da função pública democrática, pois, ademais de violar a lei, antepõe o interesse particular ao público. Como disse Albert Calsamiglia, a corrupção é, sobretudo, “un acto de deslealtad del servidor público hacia los valores constitucionales: la corrupción pone de manifiesto la falta de aceptación de reglas importantes de la democracia”.
Por outro lado, para um funcionário corrupto, pelas deficiências e defeitos de seu próprio caráter, já não há um sentido do bem nem do mal, não há sensação de culpabilidade por atos ilegais nem infernos por atos imorais. O que é possível e está disponível se impõe ao correto, ao bom e ao justo. E uma vez chegado a esse ponto, a bússola moral desses indivíduos perde o norte. As limitações habituais da maldade e dos impulsos desonestos se diluem nos excessos da impessoalidade. O cinismo se impõe por encima do nível moral e a percepção de impunidade suspende a consciência ética e o sentido de dever, desvaloriza a dimensão da responsabilidade pessoal, da obrigação, do compromisso, da moralidade, do sentimento de culpa, da vergonha e do medo. E se, ademais de todos esses fatores, a situação, sua função institucional ou alguma autoridade lhe dá permissão para atuar de maneira anti-social e desonesta contra outras pessoas, um agente corrupto sempre estará disposto a “fazer a guerra” em benefício próprio.
Por onde se vê, em tema de corrupção, qualquer parecido com o que caberia chamar um verdadeiro Estado republicano brilha de maneira clamorosa por sua ausência. Vivemos sob o manto de um Estado impotente e ineficaz em que as idéias de virtude e moralidade pública parecem haver perdido qualquer sentido de valor. O governo, que deveria supostamente atuar em defesa dos interesses da maioria da população, opta por adotar uma arrogante “política de avestruz”, como se o alarmante e perigoso índice de corrupção pública não lhe diga respeito ou se trate apenas de um episódio que não tem a dimensão e a transcendência que parece ter. Nada mais longe da realidade: o que de fato salta à vista, por mais que tentem dissimular as autoridades e as instituições responsáveis, é que, já faz algum tempo, alcançamos sobre essa questão uma situação de stress, deplorável e insofrível. Em realidade, reflete bem uma mescla de ira, indignação, surpresa e, inclusive, de confessa ignorância com relação à própria essência de nossa forma de ser, de estar e de atuar.
O que podemos fazer?
Temo que já não seja suficiente a indignação, a perplexidade ou a ira passiva. É necessária reação contundente, severa e incondicional; já não é suficiente a “tolerância zero”, é necessária uma “intolerância radical” com relação a esses monstros talhados pelas circunstâncias de um Estado que, de modo dissimulado, parece tolerar, incentivar e proteger o desbarate egoísta e malicioso da usurpação pessoal dos recursos públicos (PEC nº 37/2011, a chamada “PEC da Impunidade”). É necessário que despertemos para a evidência de que não é insignificante ou “sem sentido” o que está sucedendo e que a indiferença e a falta de uma adequada, constante e eticamente comprometida atuação estatal não é ( e não deve ser) a regra. É o momento de lutar para restabelecer a confiança, a virtude e a honradez pública, e de exigir que o Estado disponha de medidas e instituições eficazes frente a seus próprios servidores que, à diferença de outros infratores, se amparam nas normas para quebrantá-las.
De que, com o fim de que sobreviva a cooperação e a moral social, é imprescindível e iniludível conscientizar a população da necessidade de denunciar e dar a conhecer publicamente esses indivíduos desonestos, cuja conduta pessoal e funcional produz um efeito canceroso, furtivo e socialmente corrosivo. Por quê? Porque a gente não é estúpida. Qualquer pessoa pode entender qualquer coisa, sempre que se a explique de forma clara e objetiva e, o que é mais importante, sempre que o tema lhe interesse o suficiente. O que condiciona a capacidade de compreensão de um público determinado não é tanto seu nível de conhecimento intelectual, senão sua motivação. E uma vez que pela corrupção de uns “poucos” pagamos todos, sempre se encontrará pessoas motivadas a denunciar e a “atuar contra” os culpáveis desse crime imperdoável.
É necessário motivar a sociedade para que lute pró-ativamente, com irresignação e “fúria justa”, contra este tipo de epidêmica pornografia moral, cuja única finalidade é a de sumir a massa na ignorância, na impotência e na pobreza mais profunda. Mostrar, inclusive, a importância de não considerar que um ato individual e isolado de desonestidade seja algo insubstancial. Que importa mais desalentar as “pequenas” e mais generalizadas formas de corrupção que nos afetam a todos a maior parte do tempo. Este é o verdadeiro custo de vigiar e denunciar as práticas corruptas levadas a cabo por funcionários correntes (por esses indivíduos “terrorífica y terriblemente normales”, para usar a expressão de Hannah Arendt ) e o motivo de que tenhamos que estar mais alerta em nossos esforços por combater as infrações aparentemente mais insignificantes, mas que geram um “injusto enriquecimento”. E que se o fazemos, talvez a sociedade chegue a ser, com o tempo, mais honesta e menos corrupta (Dan Ariely).
Em cada uma dessas pequenas atitudes se expressa a necessidade de que os abusos cometidos por funcionários corruptos sejam evitados e sancionados, porquanto comprometem e enfraquecem a confiança dos cidadãos não somente na Administração Pública, senão também no próprio conjunto do Estado de Direito. De resto, os deslizes éticos de qualquer funcionário (do mais insignificante ao mais proeminente), quando se acumulam dentro de uma pessoa, em muitos indivíduos ou em determinados grupos, acabam por transmitir o sinal de que é aceitável comportar-se mal a grande escala.
Por tudo isso é que devemos abandonar nossa cômoda apatia e, recuperando a capacidade de nossa consciência moral para perceber injustiças, vigiar, denunciar, perseguir, julgar e castigar severamente e sem piedade os verdadeiros responsáveis por uma situação que já começa a acariciar o limite da degradação moral, legal e política. E não se trata, depois de tudo, somente do legítimo direito de vigiar, denunciar e punir, mas de toda uma “declaração de princípios”. Porque, como disse Edmund Burke, “lo único que se necesita para que triunfe el mal es que los hombres buenos no hagan nada”.
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Como citar este texto (NBR 6023:2002 ABNT):
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