14 de jan. de 2013
O ATO DE EDUCAR EM QUESTÃO
Letícia Bicalho Canêdo *
Hoje, quando se fala em educação, fala-se em educação escolar. A tendência é tomar genérico e natural o fato de o ato de educar ter sido, a partir do século XIX, transferido das estruturas familiares e comunitárias para a Escola.
Um problema pouco pensado pelos educadores é a maneira como a Escola se tornou um meio de isolar as crianças durante um período de formação tanto moral quanto intelectual, de adestrá-las graças a uma
disciplina mais autoritária e, desse modo, separá-las da sociedade dos adultos. O fenômeno foi estudado pela primeira vez, com detalhes, pelo historiador Philipe Ariès, que desenhou um meticuloso quadro desta transformação e indicou a ligação estreita da ação dos reformadores religiosos dos séculos XVI e XVII com o afastamento das crianças da comunidade dos adultos.
Mas foi somente durante o século XIX que mobilizadores políticos e reformadores sociais conseguiram implantar a concepção de Escola, tal como a conhecemos hoje, impondo a
ideia de que a comunidade local, a família e a Igreja eram obstáculos para o que concebiam como progresso político e social. Quero dizer, obstáculos para a homogeneização da sociedade que se pretendia transformar em nacional. A família, em especial, em razão de sua enorme influência emocional, passou a ser considerada perigosa por inculcar, por meio da aquisição da língua materna ou da manipulação das expressões locais, dos símbolos particulares, das crenças religiosas e das relações de parentesco, modos de pensar e de
atuar que se transformavam em hábitos contrários à ideia de "uma comunidade de sentimentos e interesses que assegura o respeito aos direitos do homem e do cidadão". Ou seja, os ideais de Educação que conhecemos hoje foram divulgados e colocados em prática pelos mesmos mobilizadores políticos responsáveis pela "invenção do cidadão", no século XIX.Pois é preciso lembrar que não se tem conhecimento de registro histórico da procura espontânea do "povo" pela instituição escolar. O que se conhece são contos exemplares narrando as vantagens da educação com disciplina exercida longe da vida familiar e com as crianças separadas por idade.
São poucos os estudos que se interessaram em compreender as ações que levaram os cidadãos a aceitar a instituição escolar, junto às demais que compõem hoje a ideia do direito de cidadania. Mas não faltam registros sobre o processo de intervenção do Estado Nacional para a concretização desse direito.Estas intervenções surtiram efeito porque foram acompanhadas do trabalho coletivo da gestão da família, tanto material (imposição de documentos de identidade, mencionando o sobrenome, a data de nascimento, estado matrimonial, nome dos pais, etc.), quanto simbólica (a ideia de a família ser a salvaguarda da nação, e a de que o bom filho, bom pai, bom esposo é também o bom cidadão). A gestão tomou a forma do direito da família, de codificação de práticas de puericultura, médico-pedagógicas e da mobilização de agentes encarregados de elaborar e fazer aplicar as leis da família, de difundir e expandir os serviços de saúde, além de promover o desenvolvimento dos órgãos estatísticos governamentais. Os peritos dos órgãos estatísticos incentivaram a prática de formular os índices necessários à ação das pessoas encarregadas de legitimar e naturalizar a intervenção estatal, unificada com o nome de política familiar, política social ou política educacional. Uma política racional, científica, baseada no formalismo jurídico e voltada para a resolução dos "problemas sociais", isto é, para o que está constituído, num momento dado, como "crise" do sistema social.
Na Europa, essa intervenção estatal data do século XIX. No Brasil, o marco é a década de 30 deste século, durante o Governo Getúlio Vargas. No que tange ao Código Civil, sua promulgação é datada de 1916. Hoje esta intervenção é considerada natural, e a experiência escolar é tratada como qualquer experiência necessária à vida. A Escola exerce, na mentalidade contemporânea, a função genérica de educar. A Família, definida de maneira explícita pelo código civil, ou implícita nos questionários do IBGE, é considerada normal quando preenche os modelos oficiais e idealizados das relações humanas.
A hipótese estudada pelo Grupo de Pesquisa Instituição Escolar e Organizações Familiares FOCUS -, na Faculdade de Educação, é a de que a nossa dificuldade para enfrentar o "Problema educacional", ou a "crise da família", está no fato de ela se encontrar diante de representações preestabelecidas induzindo uma maneira de apreendê-la e de concebê-la. Toma-se muito difícil superar essas pré-noções, pois nós nos servimos delas para os usos correntes da vida.
E neste sentido que nossa reflexão se volta para a maneira como os diversos especialistas da área social e econômica se utilizam dos dados extraídos dos órgãos governamentais para representar e gerar a ideia da família e da educação escolar como o grande problema da atualidade. Ora, tanto a Família quanto a Escola sofrem na interação de muitos campos de atividades concorrentes, interessados em obter o controle do
ato de educar em nome da normalidade pública. É o caso dos partidos políticos com programas em favor da Família e da Escola, dos especialistas em direito familiar, dos educadores, da imprensa, dos cientistas sociais e de tantos outros interesses que, ao influenciar o conteúdo da política familiar e escolar transformam-no em interesse de corporações.
Indo além do pensamento daqueles que creem que a chamada crise educacional está situada na Família ou no interior da Escola, vemos o ato de educar como objeto de conflitos.
Estes muitos aspectos envolvendo o ato de educar serão o motivo central desta coluna Família. Nossa próxima contribuição dirá respeito ao poder de que dispõem as famílias em relação à Escola.
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