Educação Infantil e
alfabetização
Uma questão que
ainda parece estar posta é: deve-se ou não ensinar a ler e escrever
na Educação Infantil? Se isso ainda é uma questão talvez seja
porque ela está mal formulada. Quem sabe a pergunta deveria ser:
deve-se ou não aprender a ler e escrever na Educação Infantil?
Essa diferença
faz sentido quando concebemos a alfabetização como um processo no
qual o aprendiz vai construindo e reconstruindo suas idéias sobre o
sistema de escrita. Um longo processo que não ocorre só na escola,
mas também na vida e no mundo, pois a escrita está por toda parte
no meio urbano. Portanto, desse ponto de vista, aprender ou não a
ler e escrever na Educação Infantil passa a ter um significado
muito diferente. Passa a significar não só ter acesso à informação
sobre a escrita dentro de situações de aprendizagem
intencionalmente planejadas pela professora para ajudar a criança a
avançar em seu processo de alfabetização, mas também ter ou não
oportunidade de participar, de alguma forma, de práticas sociais
mediadas pela escrita.
Mas quem aprende
e quem não aprende a ler e escrever na Educação Infantil? Os
filhos da classe média e alta aprendem a ler na Educação Infantil.
Sempre aprenderam. Quando são ensinados, como atualmente, e mesmo
quando não eram ensinados, como antigamente (aprender aqui não
significa passar diretamente de um estado de analfabeto para um de
alfabetizado). Por quê? Porque vivem imersos em um cotidiano cheio
do que chamamos hoje de eventos de cultura escrita. Uma família de
classe média, mesmo quando não composta por leitores de livros,
realiza uma grande quantidade de práticas sociais mediadas pela
escrita: vive e circula em lugares que têm placas com o nome da rua
(e as crianças observam os adultos utilizando essa informação);
recebe e envia correspondências; consulta listas telefônicas e
agendas; lê jornais e revistas para se informar ou se divertir (as
crianças observam os adultos utilizando essas informações e são
freqüentemente as beneficiárias delas). As crianças de classe
média costumam receber informação sobre como seu nome é escrito
(em letra de forma) e, freqüentemente, os dos pais e irmãos.
Recebem jogos com letras para brincar, possuem livros de histórias
mesmo que não saibam ler e, principalmente, costumam ter adultos que
lêem para elas. E agora, além de tudo isso, crianças cada
vez menores têm acesso ao computador e, principalmente, ao
processador de textos.
Os pais que
garantem todas essas oportunidades não estão, com isso, se propondo
a ensinar nada. Essas práticas fazem parte do mundo onde eles vivem:
o mundo letrado. Um mundo que a maior parte das escolas públicas de
Educação Infantil não deixa entrar (ou tenta substituir por uma
caricatura das práticas tradicionais de cópia e memorização de
padrões silábicos, práticas que são e continuam sendo hegemônicas
na escola fundamental).
Também não se
trata de adiantar a escolarização, de trazer para a Educação
Infantil as práticas do Ensino Fundamental. Os espanhóis dizem que
“la letra con sangre entra”, e este parece um bom retrato da
alfabetização que se faz na maioria das classes de 1a série:
mecânica e sem sentido, uma tortura para crianças ativas e
reflexivas. Ninguém em sã consciência proporia trazer isso para a
Educação Infantil. O contato das crianças tanto com a escrita
quanto com a linguagem que se usa para escrever (que é um direito de
todas as crianças, embora só as das camadas mais abastadas da
sociedade o usufruam) não precisa e não deve ser, nem de longe,
semelhante ao ba-be-bi-bo-bu das 1as séries. E os textos que vamos
oferecer a elas não precisam nem devem se parecer em nada com os
pseudotextos, os IVO VIU A UVA das cartilhas. O que precisamos
compreender é que o processo de alfabetização é longo e começa
assim que a criança se encontra com material impresso, desde que
alguém diga a ela o que está escrito. E que a maioria das crianças
que estão na escola pública depende quase exclusivamente das
oportunidades escolares para ter acesso ao mundo da cultura escrita.
Esse acesso tem um papel decisivo em suas possibilidades de sucesso
escolar. E é preciso deixar claro que fazer entrar a língua escrita
na Educação Infantil não significa propor uma linha de educação
compensatória. Todas as crianças, ricas ou pobres, têm direito a
aprender tanto o sistema alfabético de escrita em português como a
linguagem escrita.
Alfabetização
e linguagem escrita
O que chamamos
dar acesso desde cedo à escrita e à linguagem que se usa para
escrever vai bem além da reflexão sobre o modo de funcionamento do
sistema de escrita, de chegar à escrita alfabética. A leitura
diária de histórias pela professora e o contato sistemático com
material impresso fazem uma diferença significativa no
desenvolvimento da competência leitora e escritora dos alunos.
Trazer para dentro da escola as práticas sociais de leitura que
existem nas famílias letradas pode fazer uma enorme diferença.
Michele, a autora deste texto, uma menina de 11 anos que em 1986 estava repetindo pela quinta vez a 1ª série, foi avaliada como analfabeta pela escola 4 . Como vemos, não é que ela não saiba escrever. O que ela não sabe -- e a escola não foi capaz de lhe ensinar -- é que a língua que se usa para escrever não é a mesma que se usa para conversar. (Observem que é preciso ler em voz alta para poder entender o que Michele escreveu.).
Michele, a autora deste texto, uma menina de 11 anos que em 1986 estava repetindo pela quinta vez a 1ª série, foi avaliada como analfabeta pela escola 4 . Como vemos, não é que ela não saiba escrever. O que ela não sabe -- e a escola não foi capaz de lhe ensinar -- é que a língua que se usa para escrever não é a mesma que se usa para conversar. (Observem que é preciso ler em voz alta para poder entender o que Michele escreveu.).
A escola
de nove anos e o fracasso na aprendizagem da leitura e da escrita
Estender a
escola obrigatória em um ano e começá-la aos 6 anos de idade é
uma decisão que já deveria ter sido tomada há muito tempo. O
Brasil era o único
país do mundo
que começava a escola regular aos 7 anos. Tínhamos (na verdade
ainda temos) uma visão maturacionista dessa questão. Da mesma forma
como mantínhamos as crianças da Educação Infantil pública o mais
longe possível da leitura e da escrita, agora, com a escola de nove
anos, estamos preocupados com a possibilidade de as crianças de 6
anos não estarem em condições de se alfabetizar. No entanto, se
tratarmos os dois primeiros anos – que corresponderiam ao pré e à
1ª série – como um continuum, um ciclo, sem reprovação entre
eles, pode fazer um bem enorme à multidão de Mateus e Micheles
deste país.
Há três anos
temos trabalhado na elaboração das provas de 1ª e 2ª séries para
o SARESP (Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de
São Paulo) 5. O que temos encontrado não são
mais os 50% de fracasso que tínhamos antes. No primeiro ano (2003)
cerca de 25% dos alunos haviam chegado ao final da primeira série
sem escrever alfabeticamente. Quando se avalia centenas de milhares
de crianças (aproximadamente 350.000), não se consegue saber em que
ponto do processo estava cada uma das que ainda não tinham alcançado
a escrita convencional. Para compreender o que acontecia com esses
alunos fizemos outra avaliação por amostragem, que nos permitiu
olhá-los mais de perto. Esses 25% eram compostos por 7% que
escreviam silábico-alfabeticamente (como Mateus em outubro) e 9% de
forma silábica com valor sonoro convencional (como Mateus em maio).
Crianças que precisavam apenas de mais um pouco de tempo de ensino
para escrever alfabeticamente. E apenas 9% pareciam não ter feito
progresso significativo em um ano. Para essas crianças – um quarto
dos alunos da 1ª série --, um ano a mais teria feito uma enorme
diferença.
Os filhos das
classes médias e altas já têm, há décadas, uma escola de nove
anos. O pré das escolas privadas da elite é, na prática, a 1ª
série de uma escola de nove anos. Só que para poucos.
Para que a
escola pública brasileira possa deixar de funcionar como o
instrumento de exclusão social que ela é ainda hoje, é essencial
que assuma sua responsabilidade com todos os alunos. Que ofereça a
todas as crianças o tempo e a qualidade da alfabetização das
escolas da elite -- cujas crianças desde os 3 anos vivem mergulhadas
na cultura escrita. Responsabilidade que é tanto maior quanto mais
pobres e oriundos de comunidades com pouca escolaridade forem os
alunos. Pois são esses -- os que não contam com outras instâncias
de acesso à leitura e à escrita -- os que mais dependem da escola.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
- Faça Seu Comentário sem Medo
- Não Xingar ou Ofender os Usuários
- Faça Perguntas a Vontade